12 de outubro de 2008

"A cidade de Leônia refaz a si própria todos os dias: a população acorda todas as manhãs em lençóis frescos, lava-se com sabonetes recém-tirados da embalagem, veste roupões novíssimos, extrai das mais avançadas geladeiras latas ainda intactas, escutando as últimas lengalengas do último modelo de rádio. [...] Ninguém se pergunta para onde os lixeiros levam os seus carregamentos: para fora da cidade, sem dúvida; mas todos os anos a cidade se expande e os depósitos de lixo devem recuar para mais longe. [...] Quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula; as escamas do seu passado se solidificam numa couraça impossível de tirar.
A imundície de Leônia pouco a pouco invadiria o mundo se o imenso depósito de lixo não fosse comprimido, do lado de lá de sua cumeeira, por depósitos de lixo de outras cidades que também repelem para longe montanhas de detritos. Talvez o mundo inteiro, além dos confins de Leônia, seja recoberto por crateras de imundície, cada uma com uma metrópole no centro em ininterrupta erupção. Os confins entre cidades desconhecidas e inimigas são bastiões infectados em que os detritos de uma e de outra escoram-se reciprocamente, superam-se, misturam-se.
Quanto mais cresce em altura, maior é a ameaça de desmoronamento: basta que um vasilhame, um pneu velho, um garrafão de vinho se precipitem do lado de Leônia e uma avalanche de sapatos desemparelhados, calendários de anos decorridos e flores secas afunda a cidade no passado que em vão tentava repelir, misturado com o das cidades limítrofes, finalmente eliminada – um cataclismo irá aplainar a sórdida cadeia montanhosa, cancelar qualquer vestígio da metrópole sempre vestida de novo. Já nas cidades vizinhas, estão prontos os rolos compressores para aplainar o solo, estender-se no novo território, alargar-se, afastar os novos depósitos de lixo."
Ítalo Calvino


"Quando vida e política, divididos na origem e articulados entre si através da terra de ninguém do estado de exceção, na qual habita a vida nua, tendem a identificar-se, então toda a vida torna-se sacra e toda a política torna-se exceção"
Giorgio Agamben
“Uma crítica não consiste em dizer que as coisas não estão bem como estão. Ela consiste em ver sobre que tipos de evidências, de familiaridades, de modos de pensamento adquiridos e não refletidos repousam as práticas que se aceitam. [...] A crítica consiste em caçar esse pensamento e ensaiar a mudança: mostrar que as coisas não são tão evidentes quanto se crê, fazer de forma que isso que se aceita como vigente em si, não o seja mais em si. Fazer a crítica é tornar difíceis os gestos fáceis demais.”
Michel Foucault
"Nós pertencemos a uma época em que a civilização corre o perigo de ser arruinada pelos meios da civilização"
Friedrich Nietzsche


"Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência. [...] Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder."
Michel Foucault

"Em conseqüência de a sociedade contemporânea ser organizada sobre exploração e subordinação, mesmo o mais bem-intencionado psicólogo contribui para a alienação, a separação de nós mesmos dos outros e de nossas próprias habilidades criativas. Confissão, reconciliação e remodelagem funcionam como focos de psicologização na televisão; por vezes o “conselheiro qualificado” é bastante explícito quanto à necessidade de mudanças em uma pessoa ou relação, mas frequentemente os participantes já absorveram suficiente ideologia psicológica para, sem necessidade de muita orientação, derramar-se em lágrimas, prender-se a suas faltas e pedir perdão. Há sempre uma mensagem sobre como seria saudável funcionar nestas condições, e sobre como esta seria a base para todo o resto."
Ian Parker
"Se, na sociedade de consumo, a gratificação é imensa, a repressão é também enorme; recebemo-las conjuntamente na imagem e no discurso publicitários, que fazem o princípio repressivo da realidade atuar no próprio coração do princípio de prazer"
Jean Baudrillard


"Se olhar muito diretamente para a dimensão opressiva da sociedade, você não a vê; só se pode vê-la olhando obliquamente, somente se ela permanecer no plano de fundo."
Slavoj Zizek


"Decompor, reduzir, explicar, identificar, medir, pôr em equações: deve haver um benefício do ponto de vista da inteligência, pois, claramente, é uma perda para o gozo. Goza-se não das leis da natureza, mas da natureza, não dos nomes, mas das qualidades, não das relações, mas dos seres. Em resumo, não se vive de saber. O conflito não está entre o pensamento e a vida para o homem, mas entre o homem e o mundo na consciência humana da vida."
Georges Canguilhem


"O trabalho de um intelectual não é modelar a vontade política dos outros; é, através da análise que ele faz nos domínios que são seus, reinterrogar as evidências e os postulados, sacudir os hábitos, as maneiras de fazer e de pensar, dissipar as familiaridades aceitas, retomar a medida das regras e das instituições e, a partir desta reproblematização (onde ele desempenha seu papel específico de intelectual), participar da formação de uma vontade política (onde ele tem seu papel de cidadão a desempenhar)."
Michel Foucault

"Somos cinco amigos; [...] A gente fixou-se em nós e assinalando-nos, dizia: os cinco acabam de sair de casa. A partir dessa época vivemos juntos, e teríamos uma existência pacífica se um sexto não viesse sempre intrometer-se. Não nos faz nada, mas nos incomoda, o que já é bastante; porque se introduz por força ali onde não é querido? Não o conhecemos e não queremos aceita-lo. Nós cinco tampouco nos conhecíamos antes e, se se quer, tampouco nos conhecemos agora, mas aquilo que entre nós cinco é possível e tolerado, não é nem possível nem tolerado com respeito àquele sexto. Além do mais somos cinco e não queremos ser seis. E que sentido, sobretudo, pode ter esta convivência permanente, se entre nós cinco tampouco tem sentido, mas nós estamos já junto e continuamos juntos, mas não queremos uma nova união, exatamente em razão de nossas experiências. Mas, como ensinar isto ao sexto, posto que longas explicações implicariam já em uma aceitação de nosso círculo? É preferível não explicar nada e não o aceitar. Por muito que franza os lábios, afastamo-lo, empurrando-o com o cotovelo, mas por mais que o façamos, volta outra vez."
Franz Kafka